O CASTELO
Construir um castelo todo feito de ar era o que sentia
Tiago, aquele pescador de olhos tristes e que a vida tanto maltratara. Naquele
dia sabia que tudo se poderia perder. O que restava também não era grande
coisa. Depois de ter perdido os pais e ganho a incompreensão de sua mulher, já
nada importava.
O vento, teimosamente soprava, e nem a ténue esperança de
uma recusa de aventura o consolavam. De facto a ordem de ir para a faina do mar
mantinha-se inalterada.
Ao chegar ao cais ainda parafraseou para Joaquim, seu
mestre;
- O mar não está de feição!
- Quero lá saber! Temos que nos aventurar! Quem não arrisca
não petisca! – Respondeu Joaquim.
As gaivotas esvoaçavam aquele cinzento céu, numa lamúria
flamejante, quando o barco já rasgava as águas do mar, aquele barco que lhe
devolvera a esperança de vida. O coração palpitava de ansiedade e nervosismo. O
medo tomara conta do seu ser.
Em alto mar, chuva e vento turvavam-lhe os olhos e a alma. A
instabilidade do que o rodeava comparava-se à sua própria instabilidade.
Por fim os gritos vitoriosos de Joaquim fizeram com que
acordasse para o que estava a acontecer…
- Força! Força! O peixe é nosso!
De uma só vez, a oval de rede descarregou uma quantidade
enorme de peixe.
- Vamos voltar. Temos venda! – Exclamou Joaquim para a sua “companha”
que vibrava de alegria.
De volta a terra o vendaval teimou na sua revolta e o mar
respondeu.
Uma enorme vaga avançou em direcção à embarcação que quase
tombou. A chegada à barra tudo se tornou mais complicado.
- Tenham calma! Vistam os coletes! - Ordenou Joaquim.
Imediatamente se dirigiu para o rádio em busca de ajuda.
Tiago estava em pânico, a sua vida poderia acabar naquele
momento.
Nova, e maior vaga, se aproximava. O desespero apoderou-se
de si e em altos brados dirigiu o seu olhar aos céus.
- Meu Deus, mais nada me resta! Nunca acreditei em ti! Neste
momento dirijo-me àquele em que nunca acreditei. Tem piedade de mim, da minha
mulher e do meu filho. Só tu me podes salvar! Ajuda-me!
De imediato a embarcação se inclinou perante a força da vaga
e encarreirou ganhando velocidade para a entrada do porto. Jamais poderia
acreditar que estava fora de perigo. Sentiu que Jesus o ouvira naquela hora de
aflição. A emoção aflui-lhe aos olhos.
A chegada ao cais fora inesquecível, avistara ao longe a sua
mulher, aflita, com o seu filho ao colo.
- Maria, eu não te largo mais. Tu e o meu filho são as minhas
maiores riquezas. Hoje descobri um novo e grande amigo.
- Quem?
- Aquele que me salvou a vida no mar e em terra, chama-se
Jesus.
Os olhos de Maria ficaram mar pelo verdadeiro milagre de
amor ocorrido na vida do seu marido.
Quantos de nós ainda somos como São Tomé e mesmo com tantos
milagres na nossa vida ainda necessitamos de visão porque o que o nosso coração
alcança não consegue sentir Deus.
Paulo Gonçalves
Passava por um típico bairro de Barcelona, altos prédios impunham-se muito altos e em direcção ao infinito. Olhando para cima conseguia vislumbrar um diminuto corredor de céu e o Sol não se via. As pessoas podiam tocar-se com as mãos, de janela a janela. Os vasos, junto das portas e dentro das varandas, estavam repletos de plantas em flor. Os moradores confraternizavam entre si na base do conhecimento de longa data. A calçada era feita de relevos moldados pelo tempo. As paredes caiadas e envelhecidas. O ar mal circulava. Passeava lentamente, absorvendo cada ponto daquela rua estreita. Não tinha pressa em chegar ao fim. Vivia-se um ambiente inerente a uma qualquer rua de uma qualquer cidade antiga.
A miséria estava latente, cães e gatos procuravam comida, se tinham dono não parecia pois não se incomodavam com eles. O lixo espalhado também era visível e indicava o que os moradores daquela rua comiam. Os vidros das janelas deixavam ver cortinas de pano gastas pelo passar dos anos permitindo antever a condição económica dos seus habitantes. Perto do fim da rua, uma mulher vendia flores e uma outra, diverso peixe. Mais ao fundo, uma mulher com olhar triste e aspecto rude, apregoava:
-Venha freguês! Venha saber a sua sina! Aproximei-me e indaguei:
-É verdade? Adivinha o futuro?
-Sim. Mostre-me a sua mão e ficará a saber de tudo!
Senti medo e fiquei sem saber o que fazer. Finalmente e depois de tanta hesitação, não resisti e quis saber o futuro.
Vais ser muito feliz! – Dizia. - Vais ter uma vida fácil, vais conquistar o mundo, ultrapassarás todas as barreiras, serás invencível, morrerás velho, muito velho, mas cego! Tens uma sina igual à minha!
Fiquei aterrorizado, paguei e afastei-me de imediato. Achei a mulher ignorante. Fui culpado, ninguém me mandou ser tão curioso, vivia agora um pesadelo, tinha ouvido um monte de mentiras e ainda por cima tinha pago para ouvir tanta inutilidade. Arranjei um problema que me perseguiu pela vida fora, pesadelos assolavam-me durante a noite e vivia constantemente o medo que as palavras daquela mulher produziram em mim. Posteriormente a vida profissional levou-me a diversas partes do mundo, sempre acompanhado por este pesadelo.
Findo o meu percurso profissional, tinham-se passado muitos anos, a curiosidade era crescente e decidi regressar àquela rua de novo. Os pensamentos sempre presentes. Será que a mulher já faleceu? Isso seria mais que normal, já tinha uma certa idade quando me leu a sina.
Ao chegar, constatei que grande número de artérias tinha sido alterado. Casas novas, maiores e mais bonitas. O chão tinha sido alcatroado, era visível a evolução. Num local ou noutro, restavam alguns edifícios antigos. Das vendedoras de flores e peixe nem sinal. Os cães e os gatos por ali continuavam. Fui caminhando e revivendo o passado. O meu coração batia velozmente, até que visualizei o fundo da ruela, aterrorizei, o meu coração parecia querer sair de dentro de mim. Parei, respirei bem fundo e por fim senti-me melhorar. Sentada à entrada da porta, estava uma mulher vestida de preto e não se tratava de uma mulher qualquer. Que idade teria? Perguntei-me. Eu nem queria acreditar, será que é mesmo ela? A mentirosa? Perguntei-me várias vezes.
Fui-me aproximando com receio e com coragem dirigi-lhe a palavra:
-Então a senhora ainda lê a sina?
-Quem está aqui? Perguntou.
Fiquei arrepiado.
-Há muitos anos leu-me a sina, aqui neste mesmo lugar. Recorda-se?
Entretanto, abeira-se da porta, vinda do interior da casa, uma mulher mais nova e era parecida com a outra.
-Quer que lhe leia a sina, senhor? Perguntou com naturalidade.
-Não, ela leu-ma há muitos anos.
-Agora já não pode ler. Está cega. Eu posso ler-lhe sou neta dela.
-Nem pensar, ela disse-me que a minha sina era igual à dela. Chega de pesadelo! E fugi apressadamente.
Nunca mais quis acreditar na leitura da sina.
Passaram vinte anos e hoje agradeço ao João, meu neto, que escreve isto para o meu blogue pois eu não consigo mais. Estou cego e não vou voltar a ver, foi-me diagnosticada a morte dos lóbulos occipitais do canal da visão.
Baseado numa história verídica
Escrito e adaptado por Paulo Gonçalves.
“Mágica Maresia”
Transportava consigo uma mágoa que lhe apertava o peito e que transformava os seus dias em dias um pouco mais amargos;
Lembrava os seus tempos de infância e das brincadeiras que eram momentos de alegria e que foram sempre inesquecíveis, isto até um certo dia:
O seu pai ia todos os dias para o mar e como detestava ser acordado pelo despertador lá lhe incumbia de o despertar a tempo de se apresentar para a sua faina diária, ele fazia isso sempre com muito gosto e lá ia sempre com uma hora de antecedência chamar o seu pai.
Estava uma bela tarde e não abdicou daquelas brincadeiras com os seus amigos quando de repente ao olhar para o relógio, se deparou com a hora tardia, foi a primeira vez que tal acontecera. De imediato foi a correr a chamar o seu pai pois já estava atrasado e, por certo, ia ouvir ralhar. Ao chegar ao quarto chamou por ele.
- Pai! Acorda, eu esqueci-me de te chamar.
O meu pai olhou para o relógio e disse:
- Meu Deus! Estiveste na brincadeira não foi?
Claramente incomodado respondeu:
- Sim, estive.
Já de saída, e enquanto esperava uma reprimenda que surpreendentemente não vinha, o seu pai voltou atrás aproximou-se e abraçou-o beijou-o na face e para espanto seu ainda esboçou um carinhoso sorriso.
- Até amanhã, filho.
- Até amanhã, pai.
Este foi o dia mais inesquecível da sua vida pois foi a última vez que esteve com o seu pai. No dia seguinte soube que o barco tinha embatido contra uma rocha afundando depois. O seu pai faleceu nesse embate.
Até hoje se pergunta: O que foi aquele esquecimento? Porque não se manteve esquecido?
Porque não deixou que Deus continuasse a atuar? Porque Deus se manifestou deste modo e não teve capacidade de perceber? Porquê? Porquê?
História que pode pertencer a um qualquer filho de um qualquer pescador.
Paulo Gonçalves
SENHORA DA BOA VIAGEM
Senhora Da Boa Viagem
Dá-me a luz do vosso olhar,
Pois rezando a vossos pés,
Está um velho homem do mar.
O prior, vendo aquele velho homem do mar, tão compenetrado, aproximou-se dele e indagou…
- Bom dia!
-Bom dia Sr. prior. - Respondeu
- Meu bom homem, que fazes por aqui?
- Converso com a Senhora da Boa Viagem.
- E do que lhe falas?
- Falo-lhe assim…
- Senhora entrego-te a minha vida, ela conduz-se no teu amor.
Confio na tua graça, pois sei que me levas a nosso senhor. No mar busco o pão, aí nunca me faltas, ao redor da mesa os meus filhos brincam e alimentam-se. A minha família é feliz e o meu coração confia no teu amado filho.
- Muito bem. Fico feliz por reconheceres a graça de Deus na tua vida. E agora qual é a tua obra? Questionou o padre.
- A minha obra?
- Sim. Que fazes tu para que Jesus seja sinal de esperança para os outros?
- Se calhar não faço grande coisa. A minha família sabe que a amo, que faço tudo por eles. No trabalho tento ser cordial e tenho feito amigos. Estou feliz. Se calhar falta mais, muito mais!
- A embarcação onde trabalhas participa na Procissão do Mar?
- Eles não queriam.
- Não? O que lhes fez mudar de ideias? Questionou o Padre.
- A minha visão em relação a Deus. Falei-lhes de tudo isto que acabei de falar consigo.
- E eles?
- Refletiram e acabaram por concordar. Entregamos, assim, toda a nossa confiança na Nossa senhora.
- Meu bom homem. Trabalhaste a obra de Deus na terra. Nesse caso és sal!
- Sal?!
- Sim, o sal que dá sabor. Tempero… esse tempero diferente que é ser cristão.
Essa postura que se passa aos outros que os contagia e evangeliza. Essa palavra que nos alimenta, que é palavra de Deus e que o mundo tanto necessita.
A procissão do Mar é uma mensagem evangelizadora para o mundo, tal como todos os atos de fé, pois tem na sua mais pura essência o amor de Cristo.
Por isso lhe dizemos;
Num lindo cântico ao céu
Vou implorar com fervor
Que nos concedas a graça
A graça do vosso Amor
Boa festa para ti, homem de fé.
Paulo Gonçalves
O MALMEQUER
Colhi um malmequer no jardim.
Era belo e branquinho.
Os outros eram amarelos.
E este estava sempre sozinho.
Sentia-se triste, naquele dia cinzento, porque os outros não lhe ligavam.
- Digam-me lá bom dia! Afinal porque não me falam?
Respondeu-lhe então o amarelo.
- Não te falamos, pois então! És diferente de todos nós.
- Mas que culpa tenho eu? Não escolhi ser assim. Retorquiu.
- Pois… Nós é que não temos culpa de te ter por aqui!
Entretanto o sol apareceu.
Realçando as suas cores
Aquele campo assim…
Libertou os seus odores.
Reuniram os malmequeres amarelos
Com o intuito de lhe cobrirem o Sol
O sol revoltado…
Mostrou-se bastante zangado.
- Afinal o que se passa?! Questionou.
-Não gostamos deste malmequer. É o único com esta cor. Não o achamos normal. Disse o malmequer amarelo.
O sol nem queria acreditar.
- Tenho que repartir os meus raios por todos. Vós sois muito bonitos e todos filhos de Deus que é nosso criador. Desrespeitar só porque é diferente é muito injusto. Estais a desprezar algo criado por Deus. Gostaríeis de ser desprezados?
- Não! Responderam em uníssono.
- Por ordem do senhor, o meu calor é para todos. Nunca, ninguém foi excluído!
Se nasceu, tem direito de viver e é belo como vós! Exala perfume como vós! Está no meio de vós!
Os malmequeres conversavam entre si envergonhados pela atitude que vinham tendo com o seu semelhante.
- Desculpa-nos malmequer branco. Fomos injustos contigo. A partir de hoje vamos ser teus amigos.
O malmequer branco regozijou de alegria e o sol brilhou ainda com mais vigor.
A igualdade é inimiga da discriminação mas amiga do homem.
Paulo Gonçalves
A PESCARIA
Estava um
belo dia de Sol. O chilrear dos pássaros denotava a estação que se vivia. O
aroma do campo chegava a si em forma de desafio. Podia vislumbrar pelas
cortinas o doce balancear das folhas do vasto arvoredo que era imensidão. O
vermelho e branco do prado deixava antever uma diversidade de flores
campestres. A casa de montanha confundia-se e embrenhava-se na esplêndida
paisagem.
Levantou-se e dirigiu-se para a cozinha para tomar
a sua primeira refeição.
- Vou mesmo
trazer aquele peixe enorme. Vai ser hoje!
Joaquim
resolveu aproveitar o dia ao máximo, fazendo o que mais gostava, pescar.
Entre
assobios e pequenos cânticos, lá foi todo satisfeito para o lago. O seu
entusiasmo era regado de perfumes, cor e raios de sol.
Ao chegar deparou-se
com um seu vizinho, Mário, com o qual nunca simpatizou, e que chegou um pouco
antes de si.
- Bom dia!
Disse o seu vizinho.
- Bom dia!
Respondeu de forma rude.
- Hoje vou
pescar um daqueles…
- Acho que
eu é que vou! Retorquiu o Joaquim, reforçando a sua antipatia para com o seu
colega.
A pescaria
assim começou e a espera foi longa. O Joaquim congratulava-se pelo facto de as
águas límpidas do rio não ofertarem nada ao seu vizinho.
- Eh! Eh!
Não hás-de conseguir nada! Ou não me chame Joaquim!
Por fim a
cana deu sinal e o Joaquim já gritava de felicidade.
- É agora! É
agora!
Mas qual não
foi o seu espanto, quando olhou para o seu lado esquerdo, verificou que se
passava o mesmo com o seu vizinho.
- Não
acredito!
Ficou ainda
mais desiludido ao verificar que as suas sedas se tinham juntado e que o peixe
vinha agarrado às duas.
-Desculpe
mas o peixe é meu! Disse o Joaquim.
- Olhe que
não! O peixe também me pertence, está agarrado à minha cana!
- Não me
provoque! Eu cheguei primeiro!
- Não me
provoque você! Dividimos o peixe a meio! Retorquiu Mário.
- Nem
pensar! Dê-mo!
E dizendo
isto deu um forte puxão na cana que originou a queda do peixe na água do rio.
Os dois
ficaram revoltados.
-Veja o que
fez! A culpa é sua! Seu… Disse o Joaquim.
-Não! Não
tive culpa nenhuma! E dizendo isto resolve ficar calado, continuando,
pensativo, a pescaria.
Passados
alguns minutos o Mário pesca um peixe enorme que se apressa em retirar da seda.
O Joaquim
pensava: “Não é justo. Queria pescar e por causa deste sujeito fiquei sem o
peixe e agora ele apanhou um! Deve estar todo feliz da vida a gozar comigo. Que
ódio!”
Entretanto o
Mário aproximou-se com o peixe na mão e disse:
- Olhe, eu
nem sequer gosto muito de peixe, por isso ofereço-lhe.
O Joaquim
olhou-o estupefacto.
- Mas porque
faz isso? Eu vou pescar um com toda a certeza!
- Aceite por
favor. Não me trás felicidade levar este peixe para casa, sabendo que o meu
vizinho o queria para si. Ainda por cima só o pesquei por desporto. Tome! Disse
entregando-lhe o peixe.
O Joaquim
olhou estupefacto para o seu vizinho. A ganância e o egoísmo são inimigos da
convivência. A partilha mostra o quanto é bom dar e conviver com o nosso
semelhante.
Dando se
recebe e quem recebe tem sempre algo para dar.
Paulo Gonçalves
O CARACOL
Andava
pachorrento e entediado, o caracol. O chuvisco, que tanto desejara,
irritantemente, continuava a cair. As gotas, que das árvores escorregavam,
produziam um som que lhe deixavam algo chateado. Tudo permanecia calmo demais.
Nem das suas companheiras formigas, sinal havia. Olhou aborrecido para o céu
com ar bem chateado e resolveu subir por um verde tronco de um vulgar caniço
igual a tantos outros, muito embora este lhe parecesse mais elevado, ou não
fosse tão sério o assunto que tinha para tratar com aquela nuvem tão chata.
Lá foi subindo
a passo de caracol e muito esmerado em bater um recorde, dada a urgência que
advinha da situação.
Chegado ao
topo, olhou para o céu e não se deteve em contemplações.
- Olha lá ó
nuvem, não achas que já basta?! – Interrogou demonstrando todo o seu desagrado,
ao que a nuvem respondeu…
- Já basta o
quê?
- De pingo
mais pingo. Já chega! É que não passa disto. Porque não te vais embora e nos
descobres o sol?
- Ora! Ora!
Primeiro pedias chuva e agora queres sol, afinal o que queres, sol ou chuva?
- Não sejas
parva. Já há dias que pairas sobre nós e tudo o que é demais enjoa.
- Qual é o
teu problema?
- O meu
problema é a solidão. Por causa dos teus pingos ninguém sai dos seus abrigos e
eu não tenho com quem falar. De resto já aborrece ver tudo sempre tão molhado.
- És um
caracol diferente dos outros. Até pareces humano!
- Humano?!
Porque motivo, me fazes essa traumatizante comparação?
- É simples
meu caro! Nunca estás satisfeito com nada. Se não chove, é porque não chove! Se
chove é porque chove! Nunca estão satisfeitos com nada, mesmo que esse nada
seja o melhor para eles. Sabes, estes seres nunca percebem nada e tudo para
eles é complicado e sinónimo de insatisfação e infelicidade. Nunca dão valor ao
que a vida contém.
O olhar do
Caracol deixava agora, transparecer alguma desconcertação.
- E tu achas
que eu sou assim?
- De certa
forma sim! Não estás a entender o meu papel, a minha missão.
- Sim, já
percebi!
- Estou aqui
o tempo que for preciso. Tenho que regar os campos e esperar pelo vento pois é
ele que me vai transportar para outro lugar. Por acaso achas que eu também não
me aborreço de permanecer tanto tempo por aqui?
O Caracol
baixou a cabeça envergonhado.
- Nunca
tinha pensado nisso.
- Pois, eles
também não pensam. Logo que venha o vento partirei e vos deixarei o sol.
- Sabes,
agora acho que já desejo que fiques. Conversaste comigo, fizeste-me companhia e
isto já não será o mesmo sem ti.
- Não te
preocupes, volto sempre nos Invernos e colocaremos a conversa em dia.
De repente
os caniços abanaram. O vento levantara-se. O sol começou a romper.
O caracol
olhou de novo para a sua amiga que lhe gritava.
- Adeus
amigo. Chegou a hora da partida, vou conhecer outros lugares. Gostei de te
conhecer. Tem cuidado e fica sempre feliz. Volto no próximo Inverno.
- Adeus
amiga. Fico à tua espera.
A tristeza
tinha sido compensada pela certeza de ter ganho uma amiga.
Muitas vezes
achamos que tudo está mal, mas onde o mal está poderemos sempre encontrar algo
de bom. A procura da felicidade é sempre ambição humana, no entanto é sempre
tão difícil reconhece-la em nós e no que a vida nos oferece. Talvez seja um
mito ou talvez seja ignorância nossa.
Talvez…Talvez…
Paulo
Gonçalves
“Conto de Natal”
“Mágica Maresia”
A dor, frio
e tristeza, marcavam aquela esquina sombria.
Aquele saco
que se rompera deixara a descoberto os objectos que deram tanta alegria noutros
Natais.
Indignado e
triste, conseguiu olhar de soslaio para o seu amiguinho coelho já desbotado.
- Então Job!
Porque nos fizeram isto? Porque estamos aqui?
- Meu
ursinho inocente! Não vês que já não nos querem?
- Não?
- Não! Esta
noite é Natal e o nosso antigo dono terá novos brinquedos. Nós estamos gastos!
Já não servimos para nada!
- Não! Não
acredito! Ele gostava tanto de mim! Quero voltar para a minha cama quentinha!
Dos olhos do
pobre urso rolavam lágrimas de profunda tristeza e abandono.
- Tenho
frio! Achas que algum menino ainda nos quererá? – Questionou.
- Deixa-te
de ilusões! Daqui vais para a lixeira! – Disse o coelho…Vá não chores, acontece
a todos.
Nesse
preciso momento foram invadidos por uma enorme luz. Assustados tentaram
esconder-se.
- São os
homens da limpeza! Disse o urso.
- Chegámos
ao nosso fim! Disso o coelho abraçando-se ao seu amiguinho.
Porém a luz
cada vez mais forte aproximou-se deles, falando-lhes…
- Olá! Não
tenham medo! Sou vosso amigo! Tenho um convite a fazer-vos!
Ambos
olharam estupefactos para aquela luz que falava. Afinal a luz tinha um rosto e
uns olhos com um brilho muito especial.
- Mas tu és
um bebé! Disse o urso.
- Sim sou.
Chamo-me Emanuel.
- De onde
vens? – Questionou o coelho.
- O meu pai
enviou-me para dar alento, felicidade e amor a toda a humanidade.
- Mas nós
não somos humanos! – Responderam em uníssono.
- Mas
poderão dar felicidade a muitos meninos que nada têm.
- Isso seria
óptimo! Mas como será isso possível?
- Venham
comigo!
De imediato
foram invadidos por uma luz intensa que os levou aos céus. Voaram sobre várias
terras e por fim chegaram a uma com as casas muito pobres e onde as crianças
brincavam na rua, quase sem roupas.
- E agora?
Perguntou o urso.
- Agora
serão lançados para que aquelas crianças os apanhem premiando-as com felicidade
por terem, finalmente um brinquedo.
E assim aconteceu.
As crianças corriam nas ruas, apanhando os seus brinquedos. O urso e o seu
amiguinho coelho, invadidos pela alegria, despediram-se do seu amigo Emanuel.
- Adeus!
Adeus! Grande amigo! Salvaste-nos!
- Adeus
amiguinhos! Apenas cumpri a vontade do meu pai que me enviou para dar alegria
ao mundo! Fui anunciado pelo anjo e os anjinhos do mundo são as crianças. Que
nenhuma delas chore por não terem um brinquedo. Feliz e Santo Natal!
- SANTO
NATAL! – Responderam todos os brinquedos e as crianças tão felizes.
Paulo
Gonçalves
POBRE CRIANÇA TRISTE
“Conto de Natal”
Criança triste
Aconchego que não encontrou.
Ternura perdida nas esquinas.
Na vida que não concretizou!
Não há nada mais triste que o sorriso de uma criança triste.
Seus olhos vincados de medo cruzavam os outros que naquele parque de supermercado caminhavam felizes e cheios de vida. Uma criança carregava, com ar esfuziante, um brinquedo, um comboio que sua mãe acabara de lhe oferecer.
E, na rua pedindo esmola...
- Uma moedinha. Por favor! Preciso de comer uma sopinha.
O vento não acalma os sonhos destruídos desde cedo. Vivia com a resignação construída na alma. A tristeza era a sua única companheira. A frieza e desprezo das pessoas era uma constante e algo a que já se habituara.
No rosto, as duras lágrimas que teimosamente rolavam porque a alegria insistia em não vir.
Olhava constantemente para os outros, imaginava que tinha tudo, Amor! Lar! Pais!
O pão que hoje comeu teve que furtar de um menino qualquer, naquele canto amargo da vida.
Uma senhora aproximou-se;
- Menino. Estás sempre por aqui, não tens família?
- Não senhora! Não tenho nada!
- Nada? Onde moras?
- Debaixo de umas escadas?
- A tua família? Onde está?
- Morreram todos no seu egoísmo! Nem sei quem são! Deixaram-me numa instituição! Não sei porque razão! Talvez fosse empecilho!
Sem perceber porquê, a senhora desatou a chorar!
- Porque chora?
- Porque não sei se me podes perdoar mas…
- Mas?
- Tudo farei para que isso aconteça! A vida obriga-nos a errar! Muito embora eu não tenha perdão. Entre o errar, recuar e refazer vai um enorme esticão. Havemos de conversar, mais tarde. Queres deixar a rua e viver numa casa com tudo?
- Com brinquedos? Não! Não!
- Não queres?
- Quero uma casa feliz e com amor…! E também com brinquedos!
A senhora deu uma gargalhada.
- Assim será. Vem comigo!
E lá foram os dois, de mãos dadas, unidos.
Os clientes daquele supermercado não deixaram de notar a diferença naquele canto. Faltava o olhar daquele menino triste. Talvez sentissem saudade. Talvez se sentissem menos incomodados, talvez menos obrigados na sua consciência ou quiçá, talvez mais aliviados por não se incomodarem com aquela esmola habitual. Talvez…
Amor de Maria.
Amor de Jesus.
O olhar desta criança
A vós me conduz!
Paulo Gonçalves
AQUELA MANHÃ
Naquela manhã tudo se tinha desmoronado. Entre rasgos e fendas de
giesta, ramos diversos e ervas daninhas, a sua alma estava no chão. As silvas
pareciam inócuas e as dores não sentidas eram afagadas pelo sofrimento.
Da casa dos seus pais, restavam apenas escombros, estes afagavam e
guardavam as duras batalhas perdidas.
Deambulando, caminhou sobre as ruínas e na sua cabeça ainda ouvia o
ensurdecedor barulho dos tiros e explosões. As lágrimas, teimosamente caiam e
vincavam o seu calor no rosto que aquela manhã gelara. Na tez, as rugas da
ansiedade, não lhe deixavam caminho para a esperança que se vestia de
desespero. No olhar a busca era incessante e percorria a agonia que se impunha.
- Mãe! Pai! - Gritou.
- Mãe! Pai! – Gritou ainda
com mais força.
A guerra fizera-se convidada, a fúria das armas e dos bombardeamentos
tudo destruíram. Restava-lhe a esperança de não ter perdido os seus pais.
…”Tinha ido buscar água ao rio, ao nascer do dia, conforme lhe mandara
a sua progenitora, quando, de repente e chegando ao local um barulho
ensurdecedor ecoou por toda a floresta. Uma explosão mesmo ao seu lado e um
enorme corrupio da armada deixou-lhe o pânico e o medo. A passarada,
estonteantemente esvoaçou. Um esquilo que por ali andava, em desespero, a sua
toca encontrou. A sua única saída era um fiel esconderijo onde outrora
costumava brincar.
Por fim o silêncio regressou e a medo foi cambaleando no intuito de
encontrar a sua casa.
Que restaria? O que se teria passado? Porquê aquela guerra?”…
De entre as ruínas, que teimosamente afastou, a sua vida perdida estava.
Entre duas mãos, um crucifixo e todas as suas raízes. Ainda mal vislumbrou uma
fotografia de um feliz dia de acção de graças, que manteve guardada na memória
e que permaneceu exposta na sala de jantar durante muitos anos. Testemunhos de
felicidades vividas ao lado dos seus queridos pais. Fragmentos doces de um
passado que se tinha rompido abruptamente.
Uma dor que lhe dilacerou a alma. Um grito forte e profundo. Estava
sozinha, como tantas outras crianças deste mundo. Vítimas de guerra, vítimas da
dor, vítimas do egoísmo.
- Mãe! Pai! Que faço agora?
- Vem, vem comigo. Ouviu esta frase que partia de uma voz celestial.
- Quem és tu?
- Se confiares em mim, nunca te abandonarei. Esta manhã é a tua
salvação.
Olhou de soslaio e conseguiu visualizar uma branca luz. Sentiu calor.
Sentiu conforto e deixou-se guiar.
- Já não sinto dor! Já não sinto dor!
Encontrara tudo o que tivera receio de perder. Talvez o valor das
coisas se fizesse sentir. Talvez fosse o sentimento real que viera à tona,
talvez não se tivesse apercebido da importância do amor. Talvez…Talvez…
A humanidade tem fome. Fome de amor! Fome de justiça! Fome de Paz! Fome
de Deus.
Quem te salvará? O amor? O homem, ou o espírito?
Paulo Gonçalves
VIDA DE FORMIGA
A formiga
resmungona andava a trabalhar.
O Inverno
aproximava-se e tinha que amealhar.
Apareceu-lhe
o formigão para lhe falar.
- Olhe lá
dona formiga, temos um banco alimentar.
- O que é
isso? Perguntou.
- Muito
simples, quanto mais deposita, mais o alimento duplica.
- Isso é
óptimo vamos lá começar!
Sem medos
foi entregando os alimentos ao formigão.
Ao fim de
seis meses esperava então o juro alimentar.
O formigão,
muito gordo, fê-la espantar.
- Mas então?
Que é do meu alimento?
- Olhe, tive
que arrecadar. Trabalhou tanto que não o consegui carregar, por isso fui
comendo para me aliviar.
- E agora?
Quero o meu alimento!
- O seu
alimento, irei entregar. O juro, não posso pagar, pois foi recompensa por, o
arrecadar.
- Maldito!
Tanto que trabalhei devia ter o dobro.
- Não seja
gananciosa. Tudo se ia estragar.
- Não
interessa, ficava com a despensa a abarrotar.
- E depois?
- Atirava ao
mar e voltava a trabalhar.
- Prefere
então estragar ao invés de matar-me a fome?!
- Pois, não
queres trabalhar.
- Isso é
falso. Pois não tive que guardar?
- Não
adianta, contigo não quero falar. Estás-me a arreliar.
De imediato
uma ventania se levantou que pela casa entrou e em todo o alimento pegou.
- Veja
formiga tudo se perdeu! Por sua culpa! Agora vou ter que trabalhar!
- Pois! Eu
também! A culpa é sua que não cumpriu a sua palavra e em si confiei!
- Bem agora
não podemos fazer nada a não ser trabalhar se quisermos sobreviver.
E lá foram
ambos trabalhar! A ajuda, mútua não puderam dispensar. Talvez tenham aprendido
que quem tudo quer, tudo perde e a conquista não poderá vingar quando cada um, honestamente, não deseja trabalhar.
Paulo
Gonçalves
Festa de Nª Srª da Boa Viagem.
A Festa Das Nossas Vidas.
Recordo os meses de Julho e Agosto em que passava muito tempo no café de uma tia minha (Café Alcatraz), na Ribeira, ainda no tempo em que o pescado ali era descarregado. Eram meses cheios de magia com a chegada dos divertimentos para as festas em honra de Nª SRª da Boa Viagem (Festas da Cidade). O brilho de felicidade era bem visível nos nossos olhos assim que chegava um Carrossel ou pista de carrinhos. Os dias da festa eram uma alegria, sempre achei a Procissão no Mar um acontecimento muito bonito, ficava fascinado ao ver todos os barcos iluminados e sempre gostei muito dos fogos de artifício. Sentia e ainda hoje sinto orgulho quando oiço elogios a esta magnífica e comovente manifestação de fé, cheia de luz e cor. Entre um gelado e um chocolate lá íamos para o Campo da República.
- Em que carrossel vamos? – Questionava…
- Vamos na bacia - Respondia a minha prima Edite.
- Não! Vamos antes nos carrinhos de choque! – Retorquia o meu primo Paulo.
- Eu prefiro os aviões! – Dizia eu, ao que respondíamos:
- Vamos em todos!
Estes festejos marcaram praticamente todas as crianças da minha época. Foram momentos únicos passados naquele “Campo da República”, local onde se constituía o arraial destas festividades, local onde este ano volta a acontecer.
O sabor único das farturas ainda hoje me transporta aos tempos de outrora. Lembro-me de entrar na barraca dos espelhos e de rir desalmadamente com as diferentes formas que o meu corpo tomava naqueles espelhos. Recordo também o nervosismo que sentia ao assistir às sessões do “Poço da Morte” e de ser fotografado em cima de um Burro, numa daquelas barracas onde se tiravam fotografias. Outros tempos, outras vivências e outras formas, quiçá mais puras, de se ser feliz!
- Olha a bruxa que lê a sina! Vamos lá? Interrogava a minha prima Lurdes.
- Boa! Quero ver se acerta!
Sempre tivera uma curiosidade enorme em relação ao futuro e dessa vez vi o meu desejo satisfeito.
Que saudades que eu e todos da minha geração têm, destes tempos e desta festa.
Este ano regressa, (O Arraial) a este mesmo local. Recupera-se assim, muito da tradição perdida em anos anteriores.
Hoje esta festa continua a ser o maior cartaz turístico e acontecimento de fé em Peniche.
A sua beleza mantém-se porque o centro da celebração mantém-se inalterado. Este ano, a meu ver, marca muito positivamente estas grandes festividades que recuperam a sua grande dignidade.
Louvemos sempre Maria e que essa intenção se mantenha.
Este conto foi elaborado com partes integrantes do extenso trabalho “Lembranças” que irá ser apresentado em breve no Blogue “Peniche Livre”
Paulo Gonçalves.
Eram Três Pastorinhos
Sentava-me eu, muitas vezes, nos meus tempos de infância, no humilde sofá daquela digna sala pertença da minha casa, a ver televisão. As imagens que nos chegavam eram de apenas duas cores e nem sempre a televisão abria as suas emissões durante o dia. A economia do país e a sua evolução tecnológica, a mais não permitia. Quando se ligava a televisão em pleno dia já sentíamos que algo de especial acontecia no país. Esta situação acontecia nos dias 13 de Maio e 13 de Outubro aquando das transmissões das peregrinações. Ali estava eu a assistir, juntamente com a minha mãe e recordo que me emocionava sem perceber muito bem porquê. Lembro também que questionava a minha fiel companheira destas manhãs televisivas, acerca de muitos aspectos que aguçavam a minha curiosidade em relação ao que se estava a passar em Fátima. E foi assim num desses dias.
Tinha acabado de tomar o pequeno-almoço e sabia que a transmissão em directo de Fátima ia acontecer, por esse motivo, apressadamente, dirigi-me para a sala. A minha mãe seguiu-me as pisadas. Pouco depois de ter ligado a televisão a transmissão em directo começou.
- Mãe porque motivo isto dá na televisão? – Questionei.
- Olha filho isto dá na televisão porque em Fátima, apareceu a Nossa Senhora.
- Apareceu?
- Sim apareceu.
- Mãe, porque é que a Nossa Senhora apareceu?
- Porque trazia uma mensagem de Nosso Senhor.
- Que mensagem era essa?
- Era uma mensagem que os homens deveriam cumprir.
- E porquê?
- Porque era uma mensagem de amor.
Aquela explicação não me deixou completamente esclarecido e por isso voltei a interrogar a minha mãe que denotava já, algum cansaço por permanentemente lhe desviar a atenção acerca do que se passava na televisão.
- E a Nossa Senhora comunicou a mensagem a quem?
- A três meninos muito pobrezinhos.
- Quem eram?
- Eram três pastorinhos!
- E só eles é que viram a Nossa Senhora?
- Sim, mas no último dia das aparições houve um milagre testemunhado pelas pessoas que estavam em Fátima. Por isso eles celebram sempre os dias em que Nossa Senhora Apareceu.
Aquelas explicações e a emoção que sentia ao assistir a estas celebrações aguçavam ainda mais a minha curiosidade em relação às aparições de Fátima. Hoje percebo de uma forma mais aprofundada tudo o que se passou e concretizou historicamente, facto que lhes dá outro sentido e entendimento. A mensagem da qual Nossa Senhora era portadora era de facto, de amor e continua actual sendo digna da sua celebração, prova viva da sua importância para toda a humanidade. Nossa Senhora porta do céu, porta do amor e que por isso mesmo nos conduz a Nosso Senhor.
Tal como o Natal, a Páscoa, as Festas em honra de Nossa Senhora da Boa Viagem, também Fátima, mexeu muito comigo e ajudou, através do fenómeno, da mensagem e da sua concretização em termos históricos, a fortificar e solidificar a fé e confiança que deposito nesse meu senhor, gerador da minha existência e eterno amigo que é Jesus Cristo.
Paulo Gonçalves
Eutanásia
Olhava constantemente para as janelas daquele quarto de hospital. A chuva insistentemente batia contra os vidros não lhe trazendo respostas. A dor continuava a dilacerar-lhe a alma. Já passara um Mês desde aquele fatídico dia em que seu filho sofrera um trágico acidente que lhe roubara tudo. Olhava para o seu filho que permanecia estático e ligado àquela maldita maquina que o mantinha vivo. As lágrimas teimavam em rolar-lhe no rosto. Tudo se desmoronara. Também tinha perdido a mulher e a vida revestia-se de uma dureza impar.
Tinha chegado o dia de tomar uma decisão. Recordava a conversa que tivera com o médico e o seu coração não poderia estar mais apertado.
“- Senhor João, lamento muito mas não podemos fazer muito mais.
- Não posso crer doutor! Não me diga uma coisa dessas!
- O seu filho está em estado puramente vegetativo. Não podemos fazer mais nada.
- Não pode ser! Não pode ser!
- Tenha calma. Neste momento vamos mantê-lo vivo. Dentro de um mês falamos.”
O mês tinha passado e chegara o dia de tomar uma decisão. Tinha passado todo este tempo em oração e não vira qualquer sinal de recuperação do seu filho. A dúvida e a dor permaneciam e interrogavam-lhe constantemente; manter ou não manter a vida?
Prolongar ou não prolongar o sofrimento do seu filho? Os seus pensamentos foram interrompidos pela chegada do médico.
- Então senhor João? Temos que conversar.
- Diga doutor, mas diga algo que me anime.
- Não posso! Não posso! Temos que tomar uma decisão. O seu filho está a sofrer e não vai sobreviver, ele está em puro estado vegetativo. Lamento, lamento muito! Mas aconselho a desligar as máquinas que o ligam à vida que já não é!
- Doutor parece-me que um destes dias lhe vi mexer um dedo da mão.
- Impossível! Por favor tem que ser realista. Não adianta e isto é o que de melhor pode fazer pelo seu filho. Acredite, ele agradece!
O choro compulsivo e forte apoderou-se de si. Olhou para uma imagem de Nossa Senhora de Fátima e interrogou-a:
- E tu?! Porque não fazes nada!?
Em seguida olhou para as suas mãos que seguravam um terço, já tão seu companheiro e implorou;
- Meu Deus ajuda-me!
O médico, emocionado voltou a insistir.
- Senhor João, não se desgaste mais. Não podemos fazer nada. É uma situação irreversível. Sei o que estou a dizer. É urgente para o seu filho e para si que mude a página. Já basta de sofrimento.
Olhou cheio de amor, fixamente para o seu filho e de novo para a imagem de Nossa Senhora de Fátima ao mesmo tempo que apertava o terço em suas mãos.
- Já tomei uma decisão!
O médico suspirou de alívio.
- Vamos então desligar?
- Nada disso! Não vou matar o meu filho! Entrego essa decisão nas mãos de Deus!
O médico, surpreendido e algo desiludido, respeitou a vontade do pai.
Cinco anos depois
“Testemunho de um pai feliz”.
Quanto me sinto feliz por ter tomado aquela decisão. Na hora em que apertava o terço foi o que senti que fez com que a tomasse. Duas semanas após a decisão, o meu filho começou a mexer os dedos, contrariando todas as previsões. De imediato começou a fisioterapia e hoje fala, já anda e faz uma vida normal. Faltam apenas pequenas correcções a alguns movimentos.
O meu filho é-me muito grato por lhe ter salvado a vida. O médico perguntou-me o que me fez tomar aquela milagrosa decisão pois resultou numa cura sem explicação. Eu respondi-lhe:
Naquele momento aceitei e entreguei tudo nas mãos de Deus, a partir daí a obra foi dele.
No entanto, nele eu confiei e comprovou-se todo o seu amor pois soube dar-me o discernimento para não tomar a decisão mais fácil e perceber que a vida é-nos oferecida e que sobre ela não temos qualquer poder.
Não escolhemos nascer. Não escolhemos morrer e nem sequer num simples cabelo branco que vem, temos qualquer tipo de decisão. A vida é um bem precioso e nela está contido o amor que o pai tem por nós. Acabar com a vida é matar o amor que o Pai tem por nós!
Conto criado por mim e baseado numa história real.
Paulo Gonçalves
A PROMESSA
Só podia sentir o vento. A inércia e completo abandono em si nem lhe faziam sentir a agrura do Inverno. Maior que a tempestade era a dor que sentia no seu peito.
Perdida de si mesmo, cambaleou até àquela muralha onde tantas vezes fora feliz nas suas brincadeiras de infância. Outrora, em tempos já longínquos, fora pirata, bruxa má, dona de casa e tantas outras coisas de criança que nos levam a construir um mundo feliz. Agora aproximava-se da sua extremidade, do seu precipício, onde, justamente vivera alegria e sonho, expectativa e esperança. Os sons diziam-lhe segredos revoltos e salgados que só dos verdadeiramente livres podem ser ditos.
As agruras da intempérie nada eram, perante a sua vulnerável e tumultuosa existência. Queria acabar com tudo. Desejaria renascer ou simplesmente deixar de ter nascido. Emergiram-lhe à memória, as palavras de seu pai, em noite de tempestade, quando, aterrorizada o chamou ao seu quarto, por não conseguir dormir.
- Pai! Tenho medo! Está muito barulho lá fora!
- Filha não temas. Isto vai passar!
- Não gosto de tempestades.
- Sabes, por vezes temos que passar por elas.
- Porquê?
- Então filha? Como poderíamos valorizar um belo dia de Sol? Como seria se as coisas não se renovassem? Além disso depois de um mau momento vem sempre um melhor.
Esse momento nunca tinha chegado. O seu Pai tinha partido deixando a promessa de estar sempre consigo. A família tinha naufragado na vida. Só lhe restavam as lembranças de dor e traição. Os seus sonhos não apaziguaram o seu ser, vinham embrulhados em maresia avivando e fazendo sangrar ainda mais as já grandes feridas.
Aproximou-se ao máximo. O barulho do seu coração confundia-se com o som violento do vento. Já nada tinha. Só o vento!
- Pai. Vou ao teu encontro. Sinto saudades de tudo o que perdi. Perdoa-me.
Um forte som, das ondas, surgiu ainda mais enaltecido. Vinda do meio do nada uma mão que se estendeu na sua direcção. Uma voz reconfortante suou-lhe ao ouvido.
-Vem. Toma o meu caminho. Tudo tem solução. Tudo tem retorno.
Eu nunca te abandonarei…
Eu nunca te abandonei…
Estou aqui!
O som já não existia, só a névoa e uma leveza pela qual nunca, antes, passara…Talvez fosse sonho…Talvez o cumprimento de uma promessa…
Paulo Gonçalves
O POBRE E UM BANCO DE JARDIM
Um pobre solitário, arrastando-se sobre as pernas cansadas, entrou no jardim e estacou em busca do banco, onde habitualmente se deitava. Rasgou um sorriso ao vê-lo ali mesmo na sua frente – exclamou triunfante - Amigo Banco, como folgo olhar-te com uma nova cor decorado. Tenho passado por aqui, mas, o meu lugar estava sempre ocupado!
- Pudera...estava todo desbotado e ressequido do tempo. Agora estou vestido de verde e encarnado, para lembrar o Natal! – Comentou o Banco acrescentando - E os meus pés? hum...É melhor me calar… tão feios e enferrujados! … Alguns que por aqui passavam escarneciam do meu ar cinzento, pontapeavam-me até fazer o pino. Outros, já me viam, com o olhar enfastiado!
- A quem o dizes, companheiro, – confessou - estou velho e encovado, nem com muita tinta pintado disfarçava os meus oitenta e tal… - Ai, ai … O que mais dói são as dores da alma!
-Oh velhote diz-me aí! O que são as dores da alma? – Indagou.
- Tens razão! - És filho de uma árvore. Elas sentem dores físicas; se lhes arrancarmos os ramos, se as cortamos, ou se as inundarmos com matérias nocivas, contudo, alma não têm.
- Nós, seres humanos; temos alma, e dores que não se vêem, sentem-se, quando o sangue fala mais alto, corre nas veias magoado, e faz estalar o coração.
-Ah! – Exclamou assombrado - A alma faz isso?!
- Se faz! … O meu amigo, no fundo é um felizardo! Não tens mãe porque morreu; não foste marcado pela vida, nem pela família esquecido… isso são coisas da alma!
- Pois… dores dessas, não sinto… - Interrompeu num brado!
-Sobrevives sem alimentos; vestir, calçar ou tomar remédios, e o pior é, onde arranjar dinheiro para os comprar! E o tédio que cresce, quando o dia teima em não querer acabar?! - Insistiu este.
-Dizes bem, velhote. E… o tédio, o que é?
-Oh Banco… Tens lá horas que te sobrem? Ouves e vês tudo o que te rodeia; tens a natureza que te dá a noite, a lua, as estrelas e a luz do sol que irradia em ti as cores das árvores frondosas que te envolvem… - Como saboreava estes momentos! … Acolhes todos os que em ti se acomodam; as crianças que se sentam no teu colo, os namorados que se beijam – Ah! … Que saudades… E as pessoas que como eu, se contentam em repousar o corpo e os olhos… Já viste que até um cão vadio se enrosca em ti se está frio?! - Era feliz então, quando podia ajudar os outros… - Bramia o pobre de lágrima no olho.
-Então velhote, quer dizer, que eu sendo apenas uns bocados de pau, sou mais feliz que tu!?
É isso mesmo. Porém, eu sei que vou deixar de sofrer… Os sonhos, que acalentei, hão-de realizar-se brevemente!
- Ah… E os sonhos? … – Murmurou o Banco.
-Sabes, eu sonhava todas as noites com um anjo que me vinha buscar. Tanto sonhei… que Jesus apareceu uma noite de luar. Leu-me a alma e disse: - “Queres ir para um bom lugar, após o meu aniversário em 25 de Dezembro, voltarei para te levar.” - Disse o pobre com a voz embargada - Por isso, estou aqui hoje, para me despedir de ti, que foste, um bom amigo.
-Oh velhote será que não vais precisar de levar um banco?! …
-Ah! … Jesus deixou um recado para todos. “Os que quiserem ir para um bom lugar, terão de espiar na terra”, e tu, não tens nada para espiar, nem alma para salvar - Declarou o idoso.
A partir daquele dia, o idoso jamais foi visto no jardim. No entanto, o banco permaneceu no mesmo lugar, esperando a chegada de quaisquer outros Velhotes - dos muitos que povoam a terra - que quisessem com ele conversar.
Raízes M/ Peniche
Um Conto de Natal
A LUZ DO NATAL
O frio apertava naquela longa noite, as ruas estavam desertas, as luzes de várias cores pareciam tristes na sua solidão, a azáfama das últimas compras já acabara. Algures ouviam-se sons celestiais que provinham dos lares, alegadamente, felizes. Vagueando estava, quem nada tinha. Os cafés estavam fechados. Sentindo-se sozinho ansiava por encontrar alguém com quem conversar. Do bolso retirou uma antiga fotografia da família, ainda, feliz. Rapidamente brotaram-lhes lágrimas dos olhos. De repente guardou a foto que só lhe trazia sofrimento e saudade. Voltou à sua lenta caminhada nocturna, ao longe avistou uma luz que o impeliu a segui-la, nem queria acreditar ainda estava um café aberto. Aproximou-se, o estabelecimento estava vazio, só avistou um senhor, aparentemente de meia-idade, que arrumava as mesas.
- Boa noite. Posso entrar?
- Entre, mas por pouco tempo, vou fechar. Respondeu o senhor que supostamente seria o dono do estabelecimento.
- Está um frio terrível!
- Quer beber alguma coisa? Hoje ofereço um cafezinho.
- Sendo assim aceito! Bem preciso.
- Homem…que faz na rua em plena noite de Natal? Não tem família?
- A minha família não quer saber de mim. Respondeu com amargura.
- Porquê?
- Porque tratei-a muito mal…
Perante estas palavras o homem ficou muito pensativo e algo emocionado.
- Disse algo de mal?
-Não, só me fez lembrar o meu caso.
- Também não tem família?
- Que acha que faço aqui esta noite? Já todos estão em casa com as suas famílias no aconchego dos seus lares. Estou por aqui porque ninguém me espera. Ir para casa faz-me sofrer!
- Porquê? – Interrogou.
- A minha mulher e os meus filhos perderam a vida num acidente!
- Meu Deus! Lamento.
- Para piorar tudo eu, nesse fatídico dia, tinha tido uma grande discussão com a minha mulher pois cheguei a casa embriagado. Ofendi e maltratei quem tanto amava…
Perante pesada consciência, as lágrimas já lhe rolavam no rosto. Continuou:
- …Ela, desesperada com a repetida cena, saiu com as crianças e o destino encarregou-se do resto.
Perante estas palavras, o cliente, comovido, levantou-se dizendo;
- Jesus, Maria e José! Tenho mesmo que ir!
- Então homem? Não bebe o café?
- Não consigo, tenho que recuperar o meu Natal enquanto é tempo. Obrigado senhor! Obrigado! Desejo que seja feliz pois fez-me ver hoje o quanto tenho sido egoísta e mau.
E dizendo isto correu em direcção à saída, tendo tempo para uma breve paragem junto à porta. Voltou-se para o interior e indagou…
- Homem… venha comigo! Hoje Cristo cruzou-se no meu caminho, vamos passar juntos, a noite de Natal!
- Obrigado, quem sabe talvez para o ano. Boa sorte e Feliz Natal.
- Feliz Natal!
Apressadamente o homem avançou para a rua e ainda olhou para trás. Abismado, já não avistou luz alguma. A porta estava fechada e nem sequer havia sinal de um café por ali, só o frio e a escuridão reinavam…
Tomou o seu rumo seguindo agora a sua luz interior, aquela que flamejava na sua alma agora esperançosa e inundada de valores outrora adormecidos.
Paulo Gonçalves
OBRA DE DEUS
A trovoada estava zangada. A revolta fazia-lhe descarregar as suas amarguras, muito embora não entendesse porque motivo se sentia assim naquela tarde ventosa.
A nuvem indignada questiona;
- Porque estás assim, trovoada? Tanto gemido, tanto grito, tanta revolta!?
- Estou arreliada! É por causa do vento! Nunca tem tempo para nada! Anda sempre numa correria desgraçada! Brrummm! Brrummm! Brrummm!
O vento não liga, de momento…
Justificando num lamento.
- Tenho pena, mas sou assim! Que fazer? Ai de mim, que me canso constantemente! Estou com pressa permanente. Renovo o ar e transporto a semente. Por isso estou contente! Não te preocupes, trovoada. És prenúncio de chuva, que dá vida ao que transporto! Bem te podes zangar! É bom ouvir os gritos, teus! Pois tens obra para realizar! Segundo a vontade de Deus!
A trovoada já mais aliviada, no entanto intrigada, não pode deixar de questionar tão dignificante avaliação.
- Quem és tu afinal para avaliares a vontade de Deus?!
Ao que o vento respondeu:
- Eu sou a sua força! Sou a sua energia! E de dentro de si vim. Pois das suas narinas nasci e abro o caminho para ti!
- Para mim?
- Sim para ti. A nuvem tua mãe, não pára de se deslocar, por mim empurrada, alimentando-se no mar e juntamente com o sol energia vai buscar. A água de si jorra, aos campos indo parar, germinando as sementes que tive que transportar. Os teus gritos descarregam energia acumulada, prevendo grande banquete para a terra, reservada. Todos os seres se alimentam, mediante obra divina. Sejam dignos de o entenderem e respeitarem a lei da vida.
A trovoada estava estupefacta com tamanha sabedoria, acabara de perceber o que antes não entendia e sentindo-se orgulhosa de seu importante papel, agradeceu ao vento, seu amigo fiel.
A nuvem comovida desatou a chorar, regando assim os campos, que segundo vontade de Deus, na Primavera, de vida, irão brotar.
Paulo Gonçalves
PENICHE – “ A TERRA PROMETIDA”
No início do século passado, Sagres era uma terra inóspita, sem meios de sobrevivência no sector pesqueiro.
Peniche era apontada como detentora de um bom Porto de Pesca. A sardinha era o primeiro alimento das famílias e “A fome era o prato forte do povo”. Na verdade, Peniche tinha um grande potencial: O mar!
Dizia o Almocreve: - ”A sardinha prateada vale feijão e farinha!”
Anunciava o povo: - “Na fábrica do Fialho enlatam as sardinhas e mandam para fora”.
As notícias correram e os fluxos migratórios cresceram vertiginosamente.
Estas palavras soaram ao ouvido do António, como se Peniche fora “A terra prometida”.
Fez-se ao mar, pois tinha um filho a sustentar e os que mais viessem!
A viagem foi tão longa que perdeu a noção do tempo que levou a chegar. Enfrentou o mar bravio. Chegou vivo e a navegar dentro de uma dúzia de tábuas.
O António saltou a terra e logo foi rodeado pelos curiosos da praia. Olhou em seu redor e disse para quem o quis ouvir: ”Venho do Algarve e estou a gostar desta terra para viver, vou comprar uma casa”.
“O homem veio do Algarve e vem esfomeado pela certa. Onde tem ele dinheiro para comprar uma casa?!” – Cochicharam os que notaram a pobreza que mostrava.
Volvidas duas horas, o António voltou à ribeira. Trazia consigo um papel, no qual constava a compra de uma campa no cemitério local.
António não foi afortunado. Porém, comprou a sua casinha, onde ainda hoje mora.
Raízes - M/Peniche
O REGRESSO
A depressão e a saudade apoderaram-se de mim. As lágrimas, insistentes, rolavam no meu rosto. A dor tornara-se agonizante e insuportável. Não conseguia mais. Já tinham passado 50 Anos desde aquele fatídico dia 16 de Junho de 2010. Não suportei mais a agonia e resolvi dirigir-me ao pai. Tomei então, aquele caminho que à muito não percorria. Por entre verdes prados, em montanhas de energia, a minha alma foi inundada de uma calma à muito não sentida. Ao chegar olhou-me como se já soubesse o que ali, ia fazer. A luz mais brilhante que o sol inundou-me a alma.
- Pai! Preciso de te falar!
- Porque teimas em prender a tua alma ao térreo passado?
- Sinto saudades da terra, do povo, dos meus pais…dos meus pais…
- Porque estás assim?! Em breve estarão por aqui.
- Não tenho mais resistência! Pai! Por favor! Conceda-me uma excepção. Pagarei se possível…, por amor ao pai. A minha alma mora em ti!
Após breve reflexão perante tão sentidas palavras, sentiu-se obrigado a ceder forçado pelo amor ao seu filho.
- Está bem. Terás uma nova missão em breve.
Amo-te meu filho!
- Obrigado pai. Muito obrigado!
Ao proferir estas palavras vi-me catapultado para um corredor de luz que me era familiar e que se embrenhou na minha alma. Todo o sentido da minha eternidade estava naquela luz, por ela fiz-me vida.
As névoas desapareceram juntamente com a luz. Acordei em pleno largo da povoação. Abismado reparei em pormenores familiares: A velha torre da Igreja, em pedra e parcialmente caiada de branco. O soar das Ave-Marias, embora algo diferente e soando a gravação, ainda acontecia, assinalando o passar das horas. As árvores estavam completamente ressequidas, as pessoas em situação semelhante, as suas peles estavam escuras e enrugadas. Os olhos deixavam transparecer uma alma seca e tristemente marcada pelo desânimo e inércia. O sol era abrasador e insuportável. Porque estaria tudo assim num local outrora verdejante?
Por ruelas tão familiares, aproximei-me da minha antiga casinha, outrora embrenhada em brumas de ilusão e alegria. Estava praticamente em ruínas. Á entrada ainda existia uma bica tradicional de mármore envelhecido e com rasgos negros que marcavam a sua, já longa existência. As crianças, mal nutridas, fingiam, nela, beber água. Tudo estava ressequido. Um forte sentimento de tristeza foi-se apoderando de mim.
Finalmente decidi aproximar-me da velha porta de entrada da minha casa e repentinamente vi-me dentro dela. Entrei em pânico, pois a minha visão ultrapassou a referida porta sem que desse por isso. Foi uma experiencia pela qual nunca tinha passado.
Não pude deixar de reconhecer uma foto, de cor amarelada e ferida em cada mancha pelo passar do tempo, que estava em destaque na velha parede frontal da sala de estar. Um menino sorridente e feliz em cima de um cavalo, esse menino era eu. A emoção apoderou-se de mim. As lágrimas voltaram a rolar no meu rosto. Parecia ter recuperado o meu coração, pois sentia os seus batimentos.
Com a dor da minha dor avancei um pouco mais até ao antigo quarto dos meus pais, a surpresa não podia ser maior. Numa cama de ferro, velhinha e enferrujada, estava igualmente velhinha, deitada, a minha mãe em aparente estado terminal. Ao seu lado, na mesinha de cabeceira, uma série de fotografias minhas acompanhadas de uma empoeirada, imagem de Nossa Senhora de Fátima. Por cima da cama o familiar crucifixo, companheiro das minhas orações de infância. Bem junto dela e agarrando as suas mãos, das quais pendia um Terço em vidro azul que me era muito familiar, pude ver o meu pai. A sua cabeça vestira-se de neve. Nos seus olhos era visível o espaço ocupado pela tristeza e melancolia de toda uma vida. Como estavam velhinhos! Como o tempo os transformara. Senti uma enorme vontade de os beijar, abraçar, consolar-lhes na dor que ficou contida nas suas vidas com a minha partida…que dor senti naquele momento!
A luz do pai veio até mim.
- Vai! Vai para fora, a tua mãe estará em breve na minha morada.
Saí da casa em velocidade luz até a um campo que foi, noutros tempos, local de brincadeiras. Apoderou-se de mim uma nova e forte dor. Já não haviam árvores, relva, flores e água. Tudo estava seco, a cor amarelo-torrada predominava.
A luz apoderou-se, de novo de mim.
- Vem meu filho. Tenho uma nova missão para ti!....
Paulo Gonçalves
A CIGARRA E A FORMIGA
Já morava o sol no jardim da Primavera, dançavam as árvores ao sopro do vento. Este estava povoado de aves, que enlevados pelos seus poleiros dançantes, cantavam o seu deslumbramento.
A cigarra que deixara o seu berço de infância deitara-se a imaginar, criar amizade por entre a vizinhança.
- Com pássaros? Nem pensar! A mãe ensinou-me que eles são meus predadores. Debicavam-me, sem dó pelas minhas dores, até acabar num bom manjar – pensou a cigarra.
Precavida de algum embuste, lá foi ela em voo curto, treinando as asas, e espreitando a melhor caule de planta para deguste.
Avistou uma semente a ser rolada por uma formiga. Aproximou-se, e logo procurou fazer-se dela amiga
- Bom dia formiguinha. Posso cantar-te uma cantiguinha?! – Perguntou a cigarra.
- Claro que sim! – Exclamou a formiga – Mas... Não pedirás nada em troca, pois não?!
- Não – retorquiu a cigarra – E cantarolando, seguiu a formiga, que mais tarde, viria a perder de vista.
Mais adiante, viu outra, um pouco desajeitada, arrastando um pequeno grão.
- Bom dia formiguita. Queres ajuda e ouvir uma canção? – Disse a cigarra.
Porém esta não respondeu. Correu amedrontada por entre os arbustos, e com a comida se escondeu.
Até que avistou um carreiro delas, que recolhiam ao formigueiro, e ousou cantar para elas. Palavras de gentileza?! Qual nada, nem sombras delas! Antes pelo contrário. Usaram grande aspereza. Acusaram-na de no Verão andar na farra e nem para o seu sustento trabalhar. De no Inverno, passar o dia a pedinchar.
Ao qual esta lhes respondera: - “ cantar, fora um dom que Deus lhe dera. Se Ele as destinara para trabalhar, sem momentos de diversão. Estarão certamente a pagar, algo que fizeram de mal numa outra Encarnação”.
O formigueiro reuniu-se e tomaram-se de razões, e decidindo expulsar a pobre cigarra. Esta caiu por terra destroçada. Ora cantando, ora soluçando! Assim, passou a noite escondida naquelas proximidades.
Na manha seguinte, as formigas saíram para a labuta. Até que surgiu a formiga mais afável. Esta se lhe dirigiu dizendo: - cigarra, ainda está por estas paragens?
- Estou, e depois de uma noite mal passada que levei a meditar, interrogando-me sobre as causas, pelas quais, o formigueiro tão mal me tratar – carpiu mais uma vez a cigarra.
- Dissera-o a nossa Rainha, com todo o seu saber: Que no passado, as nossas avozinhas, evadiram a Biblioteca, leram no livro de” La Fontaine”, a história da formiga e da cigarra, e que às filhas contaram, na hora de adormecerem – Declarou a formiga
A Cigarra ficou abalada com tal revelação. Gostaria de conhecer o “La Fontaine” autor de tal confusão. Ela própria dir-lhe-ia que uma cigarra come raízes e seiva das árvores. Não come sementes nem grão – Disse a cigarra sob grande emoção.
Até que um dia, já o Verão declinara, de repente, desabara um grande temporal que nem o jardim da Primavera poupara: A água da chuva subira de nível e pusera em risco a sobrevivência da bicharada. Era grande a aflição. As formigas estavam cercadas.
A cigarra apercebera-se de tal situação, decidira agir movida de compaixão.
Esta voara até ao formigueiro e transportara-as para terra firme sobre o seu dorso.
-“ A justiça vem do divino, disfarçada de chuva” – pensou a cigarra de olhos erguidos ao céu.
Mais tarde, quando o arco-íris resplandecia, a Rainha mandou chamar a cigarra ao formigueiro, que em nome da sua comunidade, pediu perdão à cigarra. Por todo o passado de rejeição que haviam sofrido. Quando afinal estas, nada lhes haviam pedido. Doravante as formigas, sempre que se cruzam com as cigarras perguntam – Hei amigas, cantam-nos umas cantigas!
Raízes M/Peniche
Cristo Ressuscitado
Não era um dia como tantos outros, no Museu Nacional. Esperava-se uma grande azáfama pois tinha sido recebida a magnífica obra que tinha ganho o prémio do ano, e que passaria a estar exposta por oferta do seu criador.
Raul jamais pensara que aquele Cristo Ressuscitado lhe devolvesse o reconhecimento do público numa hora tão difícil da sua vida. A doença da sua filha tinha sido ultrapassada e como agradecimento nasceu no seu âmago, a vontade de criar uma escultura do Cristo Ressuscitado.
Em tons de esperança, de braços abertos, expressão de ternura e com olhar de uma felicidade vitoriosa, suscitou as mais variadas atenções, conquistando assim, o prémio mais desejado e que inundou o seu criador de felicidade.
A cerimónia de apresentação da obra decorrera da melhor forma possível. Muito público, ávido de conhecer esta, tão, famosa obra.
Dia após dia o seu autor dirigia-se ao Museu, nunca esquecendo de visitar o motivo do seu contentamento. Era sempre recebido com um simpático sorriso.
- Bom dia Jerónimo. Cá estou de novo.
- Bom dia Sr. Raul. Nunca esquecemos os nossos filhos. Retorquiu o porteiro do Museu.
Aproximando-se do seu Cristo, mantinha diariamente, um diálogo com ele.
- Olá meu amigo. Aqui estou de novo. Não posso deixar de te visitar, minha obra muito amada! Se pudesse, levava-te comigo, mas seria egoísmo meu, privando os outros de te visitar. Sei que ficas feliz por me ver e sei que isso significa para ti, ausência de esquecimento.
O Cristo parecia transparecer contentamento por não ser esquecido pelo seu criador.
Com o passar dos anos, as visitas de Raul foram-se tornando menos assíduas. Primeiro passou a visitar a sua obra dia sim, dia não, e depois o espaço de tempo entre as visitas foi-se alargando. As imponentes escadarias do Museu não eram possuidoras de contemplação para com o avanço da sua idade. As árvores, outrora mágicas de cor e libertação de perfumes inesquecíveis, hoje pareciam-lhe pesarosas e algo rudes, trazendo-lhe duras saudades da sua juventude.
Um certo dia, já muito cansado, abeirou-se tristemente da sua obra.
- Meu caro e fiel filho muito amado. Estou vencido pelo cansaço. Sei que tenho vindo menos vezes, sinto-me sem forças. É difícil chegar até aqui. Não fiques triste! Quero que saibas que foste muito importante para mim e que nunca te esquecerei. Quanto ao resto sei que continuarás a ser visitado e amado por todos e que jamais te poderei agradecer por continuares a divulgar o meu nome. Sentirei saudades de ti, afinal eu partirei e tu ficarás sempre!
Cambaleando e com dificuldade conseguiu abraçar-se à sua obra perante o olhar comovido do porteiro.
Os dias foram passando e Raul não mais voltou ao Museu. O Cristo permaneceu de braços abertos impávido e sereno, muito embora, com uma aparente tristeza. Talvez com saudade do seu dono que nunca mais o visitou, talvez sentindo que o que nos faz feliz é o laço que nos prende e amarra ao nosso próprio criador.
A vida vai passando e as nossas obras ficam. O espelho das nossas vidas e o que resta delas é aquilo que fomos e que deixamos como recordação.
Se fizeste uma boa obra deixaste uma marca positiva para todo sempre.
Se criaste no amor, o teu amor prevalecerá!
Para sempre seja louvado o amor deixado pelo nosso criador! Revendo-se em felicidade, Jesus Cristo! Nosso Senhor.
Paulo Gonçalves
O Velho Moinho
O velho moinho que moía o pão que avó amassava, cozia e, mais tarde, eu comia, foi um dos encantos da minha meninice. Era um caminho estreito, empoeirado e de canteiros de alfazema ladeado que dava entrada ao moinho de parede branquinha com porta pequena e a janela estreitinha.
Certo dia, em frente a ele, eu pensava! Coitadinho, com todo aquele peso das velas em cima do pequeno corpo de moinho... Imaginava as dores que ele passava.
Sempre que precisava, esperava a vinda do vento para iniciar o seu labor. Se este não vinha, ele chamava-o!
- Amigo vento vem ajudar-me!
-Tenho os ossos a doer e não posso as velas girar!
-E os meninos, vão ficar sem comer?
E o moinho chorava! Chorava...
Tanto que o vento chamou, que a chuva ouviu!
-Então moinho? O amigo vento não vem? Já o chamas há muito tempo!
-Vai-te embora chuva, não tens postura, e afugentas o vento!
A chuva começou a chorar com muita força! E retorquiu:
- Eu também sou tua amiga! E até que o vento não surja, rego a alfazema que te perfuma! E lavo-te as
velas que o vento suja!
O velho moinho reflectiu. E pediu desculpa à chuva pelo seu egoísmo.
-Sabes chuva, tudo se quer no seu tempo. Os meninos precisam do pão. E eu preciso de vento!
Por fim, o vento chegou e o seu amigo ajudou.
Hoje o meu moinho está parado. De tanto moer morreu cansado.
O moinho que hoje mói meu pão, não sente amor, nem chama o vento. É uma máquina morta de sentimento. A chuva e o vento entristecidos choram pelo meu moinho de saudade.
Raízes M/Peniche
PERDIDO
Estava perdido, as sombras de incerteza não deixavam de pairar. O desespero e a angústia tomavam conta de si. Viu-se obrigado a entrar na taberna dos pescadores, naquela noite fora de Deus. Já tinha concorrido a todos os empregos mas as respostas foram todas iguais. Não tinha outra alternativa. Antes de sair ainda ouviu a sua mãe dizer:
- Não! Meu filho, não vás, o mar não é para ti.
Ele, porém, não deu ouvidos e alguma vez podia dar?
Meia hora depois, já se encontrava na taberna. Ao entrar avistou o velho pescador, conhecido por tio António. Dirigiu-se a ele como se este fosse a sua única varanda para se agarrar num prédio de vinte andares, sem ela caía e com a queda, toda a sua vida.
Tio António estava sentado. Vestia o seu fato de pescador e na cabeça usava a sua típica boina azul. Olhou para ele e desesperado pediu-lhe:
- Posso sentar-me?
- Claro meu rapaz! A minha mesa será sempre a tua.
- Tio António, eu…
- Não digas nada rapaz. Já sei! Não há empregos na aldeia.
Ouve o que eu te digo, não queiras a vida do mar.
- Porquê?
- Em breve verás!
Dizendo isto, levantou-se rapidamente, sem dar explicações.
O empregado da taberna, que tinha presenciado a conversa, aproximou-se.
- Deu para perceber. – Disse
- Não percebi nada!
- O mestre do barco do tio António não consegue governar a família e por isso quer ir para o mar mesmo debaixo deste temporal.
- Eles vão mesmo assim?
- Como te disse, vão!
Ao ouvir isto, reflectiu por uns momentos. Saiu da taberna e dirigiu-se à praia. Ao chegar viu um pescador sentado na areia, remendando a sua rede. Aproximou-se e indagou:
- O senhor podia dizer-me se o barco do tio António já se foi?
- Já sim rapaz! Foi o único!
Nada podia fazer. Entregava agora tudo nas mãos de Deus.
Atordoado, e já em casa, desperta ao som dos sinos da Igreja. A noite ficara para trás, as vozes vindas da rua soaram-lhe agitadas. Depressa mergulhou na agitação da aldeia e não queria acusar o que a alma lhe dizia.
- Quem morreu?!
Uma mulher olhou-lhe, e hesitante disse-lhe:
- Foi o tio António e todos os que iam com ele!
Sentiu um punhal trespassar-lhe a alma.
- Tio António, posso agora compreender o quanto me quiseste bem!
Lágrimas insistentes brotaram-lhe dos olhos. Os sinos continuavam a tocar num som de dor e choro que acompanhavam o seu estado de alma.
Conto de escola feito por mim em 1985
Paulo Gonçalves
CONTO DE NATAL
O MEU NATAL MENINO.
“O meu Natal aconteceu com o meu nascimento”.
A vontade de celebrar o Natal e viver as suas emoções foi - se tornando cada vez mais forte. Observava atentamente, as janelas enfeitadas com árvores de Natal cheias de luzes a piscar e bonitos presépios que me fascinavam.
- Mãe. Porque é que não fazemos a árvore de Natal? Perguntava frequentemente.
- Ó filho é caro e dá muito trabalho.
- Vá lá mãe, eu gostava de ter também uma árvore e um presépio.
Até que num frio dia, ao brincar na rua, vi um pinheiro que achei muito bonito, estava abandonado, deitado no meio de flores vinagreiras, nem queria acreditar, era a oportunidade de realizar este meu desejo. Agarrei-o e arrastei-o para casa. Ao chegar tive receio que os meus pais não aceitassem a minha insistência;
- Mãe olha o que estava na rua! Assim fica mais barato, já não temos que o comprar.
A minha mãe olhou-me com um sorriso e disse-me:
- Está bem, vamos comprar fitas e bolas para o enfeitar, mas fazemos só a árvore.
- Está bem! Respondi cheio de alegria.
Foi uma felicidade comprar todas aquelas bolas de diversas cores e tamanhos bem como as fitas tão bonitas.
- E as luzes, mãe? – Perguntei.
- O Pai trata disso, são muito caras. Para o próximo ano compramos.
Eu concordei, muito embora com alguma tristeza pois achava que as luzes eram o mais bonito de uma árvore de Natal.
Nesse mesmo dia fizemos a árvore de Natal, eu estava tão feliz. O meu pai pintou três Lâmpadas de três cores diferentes; vermelho, azul e verde. Achei o máximo, passava horas em frente à minha árvore de Natal e sonhava, sonhava com minha noite e dia de Natal.
Hoje continuo com esta minha tradição aliada ao fundamental, o Presépio desejado que representa a verdadeira motivação da celebração do Natal, o nascimento de Jesus Cristo.
Toda a criança tem o direito de ter o seu Natal, a sua árvore, o seu Presépio, a sua família.
Muito amor, comida, paz, enfim Jesus Cristo em sua casa.
Que as famílias se agarrem a Jesus e vejam nele os seus filhos. Transmitam o que vem dele para os seus filhos, porque só nele se encontra a verdadeira felicidade.
No nosso mundo existe tudo para todos. Falta ao sentimento humano o sentimento de Jesus Cristo para que essa distribuição, igual por todos, seja feita.
Paulo Gonçalves
Lição de vida
O João era um menino humilde. Vivia com os pais e o irmão, numa aldeia na encosta da Serra do Marão. Viviam da pastorícia. Que não sendo um meio de vida abastado, iam arrecadando o pão de cada dia.
Terminadas as férias do Natal, chegava o dia de voltar à escola. Esta ficava localizada a cinco quilómetros, que diariamente, fazia a pé. Este regresso não seria igual, por ter recebido dos pais, a desejada bicicleta, de presente de Natal.
O deslumbre do olhar, se perdia no horizonte. Porém, isso não compensava o esforço que consumia, ao percorrer essa distância, que tanto o afligia. De mochila às costas, e sacola no ombro, onde uma merenda levava. Lá ia o João, em cima da bicicleta. Mal se continha de tanta alegria, e caminho fora assobiava. Enquanto a bicicleta rolava! Rolava...
A paisagem estava gelada.
As nuvens, mesmo ali ao lado corriam.
O fumo das lareiras, com a neblina,
se confundiam.
O calor das chamas saltitantes por elas
criada,
roubavam ao frio a graça de firmar a geada.
Caminho empedrado, e pelos anos polido.
Murado de xisto e ladeado de castanheiros.
Em redor destes, emergiam azevinhos verdes,
e bagas coloridas, de vermelho garrido.
Que escondiam a nudez dos seus troncos.
Pela folhagem caduca que haviam perdido.
Serra a baixo....
Do verde, surgiam salpicos,
plantados, no alto das colinas,
de casas grandes e pequeninas.
Umas de telhados escuros.
E outras de paredes branquinhas.
Os farrapos de neve fininha,
suspensos nas árvores decoravam,
cenários pintados pela natureza.
Que o Dezembro lhe emprestava.
A imensidão de tanta beleza
O gado seguia-o. Até que rumo aos pastos encontrava. À tardinha quando o sol descia, era vê-lo de regresso a casa, onde pernoitava, até novo dia.
Era Sábado. De manhã cedinho partiu na bicicleta com grande euforia. Desbravando recantos, que não conhecia. Vivendo, a liberdade do espaço e no tempo, que esta lhe concedia.
Até que ouviu algo estranho, vindo de trás de uma sebe, e correu a ver o que se passava.
Era um cão, com uma corda comprida presa no pescoço que, supostamente, teria fugido do cativeiro onde se encontrava. Este ter-se-ia enrolado num arvoredo (Tudo se repetia, o animal estava dependente da prisão que a liberdade lhe tirava), Tremia; enroscava-se; deitava-se; levantava-se; e latia. Viu que era uma cadela, por ter em sua companhia, um filhote recém-nascido, que esta carinhosamente lambia, como se lhe desse alento, e segredasse, estar ali na sua frente a salvação, que até então lhes tinha fugido. Perante tal visão, olhou em seu redor, em busca de auxílio. Não havia ninguém...Sentiu um arrepio! Era arriscado, podia ataca-lo! E se não o fizesse?! Ambos iam sucumbir de fome e de frio. Esta soltou um chiar ofegante, e olhou-o, com olhar lânguido.
Aqui o João caiu por terra, com os olhos rasos de água e o coração partido.
Desprendeu a cadela! Esta pegou o filhote com a boca, fugiu entre os arbustos como se fosse louca. Foi então que ele respirou de alívio!
Chegou a casa e contou o sucedido, com grande emoção. O pai disse-lhe que era um valente e que se sentia muito orgulhoso. A mãe disse-lhe que tinha praticado uma boa acção. As palavras proferidas pelos pais foram para ele uma afirmação. Este sentiu-se como se tivesse crescido. Ou melhor! Como se mil presentes tivesse recebido.
Decorridos alguns meses e num dia de Verão, foi dar uma volta perto do rio Na berma do caminho num deslize de terra a bicicleta caiu, e ambos foram sacudidos para o seu leito A corrente era forte e por ela foi arrastado. Quis Deus que se tenha cruzado com mato, na sua margem que o impediu de morrer afogado. Agarrou-se a tudo o que o podia, para se por a salvo. Encontrou Silveiras que lhe deixaram o corpo rasgado. Olhou o seu corpo ensanguentado e lembrou-se de Jesus Cristo. Rezou uma oração e pediu ajuda às suas Chagas com grande devoção.
O tempo urgia, e a noite estava eminente. Teve medo! Apenas se ouvia a corrente da água! Estava à mercê dos animais ferozes que na noite vagueavam com fome e sede. Os olhos queriam fechar-se. Mas não podia adormecer! Tinha de manter a fé! Teve um pressentimento, que algo de bom ia acontecer. De repente, sentiu uma presença e ouviu chiar. O que escutou não era estranho aos seus ouvidos. Era a cadela que à meses atrás, para sua sorte, tinha salvo da morte! Esta puxou-o pela roupa, e num grito de dor perdeu os sentidos.
Depois de tratado, contou aos pais, não estar recordado, por na sua memória se ter apagado, quem mais o ajudou. Tudo veio a culminar num mistério! Todos murmuraram, que foi a cadela e a mão de Deus que o salvou!
Mais tarde viu a cadela, abraçou-se a ela e chorou de gratidão.
- Companheira, estamos empatados! – Disse o João – A vida dá-nos lições nos momentos menos esperados!
Decidiu chamar-lhe Valente. A razão que encontrou para lhe dar este nome, não foi mero acaso. Mas, a mesma do pai, ao chamar-lhe valente. Ao saber que ele, a cadela tinha salvo.
O João perdeu a bicicleta, mas não foi em vão. Ganhou um novo amigo que testemunhou a sua fé naquelas horas de perigo. Esta sustentou-o de alento que lhe manteve o coração vivo. Doravante, juntos iriam, em romagem e alegria em busca de novas paisagens na encosta da Serra.
Raízes M/Peniche